quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Natal Antigo – Bastos Tigre











Da vasta mesa patriarcal, em torno,
A família reúne-se. Fumega
O rotundo leitão assado ao forno,
Entre os vinhos velhíssimos da adega.

Loiras batatas traçam-lhe o contorno
Finas rodelas de limão carrega;
E, assim, como todo o culinário adorno,
Aguarda, inerte, a sorte iníqua e cega.

É noite de Natal! Festa! Alegria!
Em cada boca há um riso iluminado
Pelo amor que das almas irradia.

Mas ninguém nota o sorriso resignado
De amarga, pungentíssima ironia
Dos meigos olhos do leitão assado...


Extraído de: TIGRE, Bastos. Poemas. [S.l.]: [s.n.], 2005. p. 112

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Desabafo encontrado num livro de Clarice Lispector - Autora anônima

Na semana passada, mais precisamente no dia 19/08/2009, peguei emprestado da Biblioteca da UnB (Universidade de Brasília) um livro da Clarice Lispector, "A maçã no escuro", que continha uma folha de papel dobrada duas vezes e nela continha este desabafo, sem assinatura ou qualquer pista para reconhecimento, que aqui transcrevo:


" A sensação é a de estar no lugar errado e com as pessoas erradas constantemente. Parece que eu fui jogada aonde não deveria estar, com pessoas que não pensam/ agem como acho que poderia ser (e isso existe?)
O que é que eu tô fazendo nessa porra de mundo com pessoas tão estranhas? Por que é que apesar de tudo eu gosto delas? Como é que mesmo achando tanto erro e tanta solidão eu continuo assim? Há uma maneira de fazer/ser o que eu acredito?
Eu só queria viver imersa no que eu acredito ser bom, naquilo que me fosse satisfatório. Mas não vejo meios de sair de onde estou, não sei como começar.
Eu sei que uma mudança de cidade não seria a resolução dos meus problemas, mas em lugar desconhecido, cheio de gente nova seria mais fácil de recomeçar. Decidir ser o que e quem eu quisesse. Ir até onde eu conseguisse.
Eu sou uma farsa, uma fraude. O que acham que eu sou não é verdade. O que acho que sou não é verdade. Eu preciso urgentemente me encontrar, definir cores e gostos e cheiros e roupas e pessoas. Ou não definir nada. Deixar as coisas irem e vejo se gosto e se gostar acompanho. Eu preciso de um tempo só, sem ver ninguém, nem falar com ninguém. Eu não quero mais opiniões. Eu não quero dizer mais nada. Eu não estou com vontade de sorrir, mas minha vida anda tão no automático que o sorriso sai sem pensar no porque. Eu cansei de todas as minhas ilusões bobas e infantis. Eu cansei de acreditar. Eu não entendo porque insisto nisso. Eu tô precisando chorar de soluçar.
Eu quero outra vida. Eu quero ser outra pessoa que não eu. Eu tô cansada das crises de sempre. De mim. Dos outros. De tudo.
Eu só queria me encontrar. Ir pro lugar certo, aprender e sentir.
Tá tudo tão engasgado que eu já nem sei porque exatamente eu choro."

terça-feira, 2 de junho de 2009

Sílvio Barbato, meu maestrinho



Hoje minhas lágrimas tiveram motivo pra cair
Não Sílvio, não!
Estás em uma ilha dando aquele sorriso gostoso
Estás cantarolando pros que estão aflitos
Seus cabelos balançam com o vento da ilha
Daquele jeito, como quando reges a orquestra
Teus cabelos são um espetáculo a parte

Tu cumprimentavas com tanta amabilidade quem nem conhecias
Conversava com as senhoras fúteis, achando graça
Falavas com uns eruditos chatos, "aqueles velhas"
Fazias sorrir toda a Sala Villa -Lobos
Falavam de ti, mas nem ligavas
Vinham-te as meninas, pois que venham mais
Tinhas tanto charme...

Mas meu Deus, Sílvio!
Você era homem! E dizem, todo homem é mortal!
E o avião... meu Deus!

Mas não! Não deve ser!
Vou acreditar nos ufólogos, nos evangélicos e nos otimistas...
Eras bom, e o avião caiu sem ti, continuastes no céu.
No avião não, Sílvio.
Aquele seu sorriso não se pode ter perdido,
A lembrança do seu sorriso não foi feita pras lágrimas
Seu sorriso foi feito pra outros risos e pra música...

Mas não Sílvio, eras homem e eras mortal
E o avião caiu...

Dormirei, e teu olhar galanteador ficará aqui, ao lado
Nem Mozart, nem Bach, nem Villa-Lobos, nem Verdi
estão mais vivos Sílvio, mas sua música é cantada e tocada
Seus nomes são falados e ouvidos
Mas o que é um nome se não um nome?
A melhor música que regestes foi teu riso contagiante
E agora ele não é mais que uma lembrança,
que não pode ser imitada pela melhor orquestra
Nem regida pelo melhor maestro
Pois só tu sabias ritmar teu sorriso... e teus cabelos...
E tu caístes...

Meu Deus Sílvio, e nem era só tu...
Quantas almas choram agora?
Mas não, Sílvio, foi só um pesadelo
E acordarás dele da melhor forma: dormindo
Mas deixaste-nos tão triste,
Acordaremos e só veremos aquilo a que chamam realidade

Mas não Sílvio, não tu...
Irei dormir agora
Fala-me num sonho que não eras homem
e nem mortal
E que o avião não caiu...

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Lisboa Revisitada - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Não: não quero nada
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.
Quero ser sozinho.Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Perdoai-os, Senhor (Cícero Acaiaba)

Pelo que confusamente escrevem
como se fosse poesia
a verdadeira autêntica Poesia
Perdoai-os, Senhor:
eles não sabem o que fazem.
Pelas palavras esdrúxulas,
canhestras,
absurdas,
mistificando os versos do poema,
perdoai-os Senhor:
eles são por natureza medíocres.
Pelas estruturas ridículas
o desequilíbrio da sintaxe
as distorções da língua
tartamudeando enigmas,
perdoai-os, senhor:
eles são por índole confusos
e hão de morrer indecifráveis.
Pela ignorância do Inefável
Em suas almas carentes de lirismo
– o bom o puro o mágico lirismo –
perdoai-os, senhor:
na árvore que nasce torta
também sua sombra é torta.
Pela ausência do sopro da Beleza
eterna nas coisas simples,
pela transcendência sutil
de sonho e mistério
palpitando no espelho do cotidiano,
sem nenhum reflexo nos seus olhos
secos
perdoai-os, senhor:
eles são os cegos que só vêem a própria imagem.
Pelo alarido de sua impotência,
as garatujas do quebra-cabeça,
as estrofes labirínticas, pregadas a martelo na cruz
da Poesia,
perdoai-os, senhor:
eles são incapazes de entender
o supremo sacrifício da Arte.

ACAIABA, Cícero. Poemas escritos na névoa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1988. p. 96-97

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O céu, a terra, o vento sossegado- Luís Vaz de Camões

Lendo "Intinerário de Pasárgada" de Manuel Bandeira, encontro o seguinte Soneto, de Camões, que ele cita. Há muito não penetrava tão completamente em um soneto, como nesse. O soneto:

O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado
Onde co vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:

Ondas (dizia) antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Como nasce uma história - Fernando Sabino

Consideração preliminar: se vc estiver no trabalho em frente ao computador com aquele rosto de pessoa séria que está, de fato, trabalhando, deixe essa leitura pra depois. Impossível ler Fernando Sabino sem rir.
Suzane

________________

Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.

— Sétimo — pedi.

Eu estava sendo aguardado no auditório, onde faria uma palestra. Eram as secretárias daquela companhia que celebravam o Dia da Secretária e que, desvanecedoramente para mim, haviam-me incluído entre as celebrações.

A porta se fechou e começamos a subir. Minha atenção se fixou num aviso que dizia:

É expressamente proibido os funcionários, no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.

Desde o meu tempo de ginásio sei que se trata de problema complicado, este do infinito pessoal. Prevaleciam então duas regras mestras que deveriam ser rigorosamente obedecidas, quando se tratava do uso deste traiçoeiro tempo de verbo. O diabo é que as duas não se complementavam: ao contrário, em certos casos francamente se contradiziam. Uma afirmava que o sujeito, sendo o mesmo, impedia que o verbo se flexionasse. Da outra infelizmente já não me lembrava. Bastava a primeira para me assegurar de que, no caso, havia um clamoroso erro de concordância.

Mas não foi o emprego pouco castiço do infinito pessoal que me intrigou no tal aviso: foi estar ele concebido de maneira chocante aos delicados ouvidos de um escritor que se preza.

Ah, aquela cozinheira a que se refere García Márquez, que tinha redação própria! Quantas vezes clamei, como ele, por alguém que me pudesse valer nos momentos de aperto, qual seja o de redigir um telegrama de felicitações. Ou um simples aviso como este:

É expressamente proibido os funcionários...

Eu já começaria por tropeçar na regência, teria de consultar o dicionário de verbos e regimes: não seria aos funcionários? E nem chegaria a contestar a validade de uma proibição cujo aviso se localizava dentro do elevador e não do lado de fora: só seria lido pelos funcionários que já houvessem entrado e portanto incorrido na proibição de pretender descer quando o elevador estivesse subindo. Contestaria antes a maneira ambígua pela qual isto era expresso:

. . . no ato da subida, utilizarem os elevadores para descerem.

Qualquer um, não sendo irremediavelmente burro, entenderia o que se pretende dizer neste aviso. Pois um tijolo de burrice me baixou na compreensão, fazendo com que eu ficasse revirando a frase na cabeça: descerem, no ato da subida? Que quer dizer isto? E buscava uma forma simples e correta de formular a proibição:

É proibido subir para depois descer.

É proibido subir no elevador com intenção de descer.

É proibido ficar no elevador com intenção de descer, quando ele estiver subindo.

Descer quando estiver subindo! Que coisa difícil, meu Deus. Quem quiser que experimente, para ver só. Tem de ser bem simples:

Se quiser descer, não torne o elevador que esteja subindo.

Mais simples ainda:

Se quiser descer, só tome o elevador que estiver descendo.

De tanta simplicidade, atingi a síntese perfeita do que Nelson Rodrigues chamava de óbvio ululante, ou seja, a enunciação de algo que não quer dizer absolutamente nada:

Se quiser descer, não suba.

Tinha de me reconhecer derrotado, o que era vergonhoso para um escritor.

Foi quando me dei conta de que o elevador havia passado do sétimo andar, a que me destinava, já estávamos pelas alturas do décimo terceiro.

— Pedi o sétimo, o senhor não parou! — reclamei.
O ascensorista protestou:

— Fiquei parado um tempão, o senhor não desceu.
Os outros passageiros riram:

— Ele parou sim. Você estava aí distraído.

— Falei três vezes, sétimo! sétimo! sétimo!, e o senhor nem se mexeu — reafirmou o ascensorista.

— Estava lendo isto aqui — respondi idiotamente, apontando o aviso.

Ele abriu a porta do décimo quarto, os demais passageiros saíram.

— Convém o senhor sair também e descer noutro elevador. A não ser que queira ir até o último andar e na volta descer parando até o sétimo.

— Não é proibido descer no que está subindo?
Ele riu:

— Então desce num que está descendo.

— Este vai subir mais? — protestei: — Lá embaixo está escrito que este elevador vem só até o décimo quarto.

— Para subir. Para descer, sobe até o último.

— Para descer sobe?

Eu me sentia um completo mentecapto. Saltei ali mesmo, como ele sugeria. Seguindo seu conselho, pressionei o botão, passando a aguardar um elevador que estivesse descendo.

Que tardou, e muito. Quando finalmente chegou, só reparei que era o mesmo pela cara do ascensorista, recebendo-me a rir:

— O senhor ainda está por aqui?

E fomos descendo, com parada em andar por andar. Cheguei ao auditório com 15 minutos de atraso. Ao fim da palestra, as moças me fizeram perguntas, e uma delas quis saber como nascem as minhas histórias. Comecei a contar:

— Quando cheguei ao edifício, tomei o elevador que serve do primeiro ao décimo quarto andar. Era pelo menos o que dizia a tabuleta no alto da porta.


Fernando Sabino tem a capacidade de retirar de fatos mais corriqueiros excelentes histórias. Confirmem com esta que ora apresentamos, extraída do livro "A Volta Por Cima", Editora Record - Rio de Janeiro, 1990, pág. 137.

Tudo sobre o excelente contista mineiro Fernando Sabino em "Biografias".

Fonte:http://www.releituras.com/fsabino_comonasce.asp

quinta-feira, 9 de abril de 2009

A leveza e agonia humana em Milan Kundera e o sofrimento dos animais

Karenin é um personagem do livro "A insustentável leveza do ser" de Miran Kundera, ela é a cadela de Tereza, uma das protagonistas do livro. O livro é ótimo! Terei de ler muitos livros obrigatoriamente para duas matérias que peguei na UnB, mas todos eles, pelo menos até agora, são muito bons.

A decadência da condição humana deixa-se transparecer nesse romance. O homem é alvo de cobranças que vêm de todos os lados: o país em que vive, as pessoas que moram ao lado, o trabalho, a família, os amigos. Fidelidade, amor, responsabilidade, tristeza, patriotismo, carinho, cidadania, severidade, seriedade, alegria... são todos sentimentos cobrados e ai de quem não os tiver espontaneamente, pois se não se pode dar tais sentimentos, deve-se fingí-los. Tentar escapar de tais cobranças é ainda um caminho perigoso, pois há uma forte tendência em se criar um compromisso com o descompromisso, onde teme-se em deixar transparecer gratuitamente o que outrora nos negávamos a dar, mesmo que queiramos dar em determinados momentos.

A suposta leveza adquirida no livrar-se de todas essas cobranças e no não importar-se com o que é convencional torna-se insustentável quando não se consegue mais evitar o agir dito irresponsável, quando mesmo que queiramos agir de determinada maneira, tenhamos medo de nos mostrar fracos ou comuns. Sabe aquela frase daquela música do Legião Urbana, letra de Renato Russo, que diz assim: "Quantas chances desperdicei quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém" ? Pois então!

A teoria nietzscheana do eterno retorno quer, antes de nos levar a caminhos metafísico-racionais, atentar-nos a esta vida que, mesmo parecendo tão medíocre e pequena, pode ter uma saída alegre, não necessariamente feliz, pois a dor é inevitável e também dela deve-se tirar proveito, mas uma vida que valha a pena ser vivida uma vez e ainda por mais e mais vezes, infinitamente. Esse caminho alegre só pode ser construido por cada um, individualmente. O ser humano deve aniquilar aquilo que lhe traz desprazer e celebrar aquilo que lhe traz prazer. Mas é aí que bicho pega: o que é que sempre é desprazeroso ou que sempre é prazeroso? O homem que consegue se livrar das cobranças de aparências que lhe faziam, consegue livrar-se de sua própria cobrança por uma aparência livre e alegre, por uma aparência leve?

Mas, voltando aonde eu queria chegar: o homem é carrasco de si mesmo e, como se já não fosse o bastante, é carrasco de seus semelhantes. O homem reclama de seu Estado, de sua família, de seu trabalho, de seus amigos e inimigos que o fazem sofrer, mas não exita em fazer sofrer... Infelizmente, em quase todos os casos, ter pena de um homem que sofre injustamente é como ter pena de um criminoso que, tendo cometido várias barbáries, foi condenado por um crime que não cometeu.

Na sétima parte do livro, "O sorriso de Karenin", Kundera nos põe a pensar no sofrimento de seres que deveriam estar livres de toda a vilania dessa complicada espécie humana, que quanto mais tenta consolar-se, mais se dilacera e dilacera também quem estiver por perto. Será que ainda é válido justificar a título de cadeia alimentar o sofrimento que o homem impõe ao seu prato principal antes de comê-lo? O homem vangloria-se de sua "humanidade", isto é, de toda sua bondade e compaixão, e chama de "animalidade" toda ação bruta e cruel, mas deveria repensar essas atribuições. Uma leoa quando vai matar um cervo morde-o logo no pescoço, mata-o e come-o. A comida humana não sofre, entretanto, só na hora da morte.
Há muito o que se dizer sobre isso, por enquanto fiquemos com as palavras de Kundera:


"Logo no começo do Gênesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro, o Gênesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta de que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus de lá tivesse dito "Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas", para que toda a evidência do Gênesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assá-lo no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela que costumava comer e apresentasse (embora tarde de mais) as suas desculpas à vaca.

(...)

Prossegue [Tereza], portanto, a caminho com as suas vitelas, que lá vão com os flancos a roçar, e mais uma vez pensa com os seus botões que aqueles bichos são realmente muito simpáticos. Mansos, sem malícia, às vezes de uma alegria pueril, parecem cinqüentonas gordas a armarem‑se às meninas de quatorze anos. Nada mais emocionante do que vacas brincando. Tereza olha para elas com ternura e pensa (é uma ideia que a assalta irresistivelmente de dois anos para cá) que a humanidade é um parasita da vaca, tal como a tênia é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma sanguessuga. O homem é um parasita da vaca ‑ seria certamente a definição que a zoologia de um não‑homem daria ao homem.

(...)

Tereza acaricia a cabeça de Karenin mansamente deitada no seu colo. Tem mais ou menos o seguinte raciocínio: não há mérito nenhum em portarmo‑nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder viver lá e até com o próprio Tomas, é obrigada a portar‑se como uma esposa desvelada porque ela precisa dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos espontâneos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar‑se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê, isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desfalque fundamental que está na origem de todos os outros.

(...)

Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenin e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece‑me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a açoitar um cavalo. Chega‑se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça‑se à sua cabeça e desata a chorar.

A cena passava‑se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado. Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo.

E é desse Nietzsche que eu gosto, tal como gosto da Tereza que tem ao colo a cabeça de um cão mortalmente doente e que a afaga. Ponho‑os um ao lado do outro, pois tanto um como o outro se afastam da estrada em que a humanidade, "dona e senhora da natureza", prossegue a sua marcha sempre em frente."

Os fatos nos falam ainda mais do que considerações éticas, como nos mostra o documentário do Instituto Nina Rosa, A carne é fraca:

http://www.youtube.com/watch?v=EghRqeZA-TU

http://www.youtube.com/watch?v=SKz6sgnUgdg


Enfim, pensar no sofrimento humano é válido sim, afinal, somos ou não somos humanos? Queremos ou não nos compreender? Mas há muito mais do que isso para se pensar. Há que se pensar no sofrimento de quem sofre sem fazer sofrer. Assim como queremos amenizar nossa própria dor, mesmo nos sentindo, as vezes, merecedores dela, será que não é válido deixar de ser culpado pela dor alheia? Pior, pela dor de quem não merece sentir dor?
É muito fácil para um leigo apontar a carência de proteína ou, nos casos mais extremos, de alguma vitamina "indispensável" para sua sobrevivência contida na carne, e assim justificar o seu consumo. Nessa hora, todos parecem ser PhDs em Nutrição. O problema da maioria das pessoas não está, entretanto, na suposta crueldade inerente aos seres humanos, está na ignorância e na preguiça de pensar sobre os seus atos... Nesse século, não é mais incomum que alguém discorde e discuta sobre atos e teorias amplamente aceitos pela sociedade: se são válidas as leis morais, se o mundo econômico é desigual, se é correto acabar com ecossistemas em troca de lucro... Mas essas coisas só são amplamente discutidas porque não podem ser completamente convenientes para as pessoas, a curto ou longo prazo. Mas pra que discordar do nosso hábito cultural (e natural) de comer carne? Na verdade, não tem necessidade de se discutir uma coisa tão banal, tão simples, tão inocente. Ou será talvez desagradável discutir sobre algo tão conveniente ao nosso paladar e a  nossa saúde (porque a carne é sem dúvida indispensável à saúde, não é mesmo?). O assunto sobre o consumo de carne, não deve ser tratado apenas pelo seu lado moral ou ético (com sermões longos e chatos como esse), temos que nos esclarecer sobre as nossas justificativas e verificarmos os prós e contras de nossos atos. Pensar apenas no impacto do consumo de  carne sobre o meio ambiente e sobre nossa saúde, entretanto, é pensar egoisticamente e racionalmente, ou seja, não é suficiente pra maioria das pessoas, que não se preocupa com a própria saúde e nem com o futuro do planeta. All we need is love! Só quando conseguirmos olhar para um boi e para um frango e não imaginá-los como coisas a serem comidas, que não pensam e não sentem e estão totalmente a nossa mercê, só quando conseguirmos olhar para eles e tivermos um sentimento de completude, de igualdade, de respeito, só assim poderemos nos livrar do nosso ato cruel com passividade. Enxergando os outros animais dessa maneira, como seres que tem suas qualidades, seus defeitos e sua graça, não deixamos de comer carne como um ato de renúncia, de resistência, afinal esse ato quando sincero é um simples ato de amor.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O retrato de Dorian Gray - Oscar Wilde

Domingo a noite e uma sensação inédita! Como descrevê-la? Díficil descrever as sensações..os sentimentos... Mas era um misto de surpresa, grande excitação, vontade de viver, angústia, aflição, curiosidade e também uma "saudade de tudo o que eu ainda não vi".
Esse emaranhado de emoções, umas tão controversas às outras, foi causado pela leitura de um livro: O retrato de Dorian Gray! Mas que espetáculo se passa em nossa mente. O livro é quase uma ópera, com suas máximas e frases deliciosas. Enquanto Dorian Gray é incitado a pensar, pensa também o leitor, que também é obrigado a aceitar as verdades dolorosas de Henry.
O livro é tão lindo e misterioso quanto seu protagonista. Oscar Wilde fez uma narrativa cativante, bela, quase esotérica.
É um livro para ser lido por todos os que gostam de compreender a si mesmos e também ao mundo... É um livro para ser lido por todos.... É um livro para ser lido... É um livro... É o livro.