sexta-feira, 15 de maio de 2009

Lisboa Revisitada - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Não: não quero nada
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço.
Quero ser sozinho.Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Perdoai-os, Senhor (Cícero Acaiaba)

Pelo que confusamente escrevem
como se fosse poesia
a verdadeira autêntica Poesia
Perdoai-os, Senhor:
eles não sabem o que fazem.
Pelas palavras esdrúxulas,
canhestras,
absurdas,
mistificando os versos do poema,
perdoai-os Senhor:
eles são por natureza medíocres.
Pelas estruturas ridículas
o desequilíbrio da sintaxe
as distorções da língua
tartamudeando enigmas,
perdoai-os, senhor:
eles são por índole confusos
e hão de morrer indecifráveis.
Pela ignorância do Inefável
Em suas almas carentes de lirismo
– o bom o puro o mágico lirismo –
perdoai-os, senhor:
na árvore que nasce torta
também sua sombra é torta.
Pela ausência do sopro da Beleza
eterna nas coisas simples,
pela transcendência sutil
de sonho e mistério
palpitando no espelho do cotidiano,
sem nenhum reflexo nos seus olhos
secos
perdoai-os, senhor:
eles são os cegos que só vêem a própria imagem.
Pelo alarido de sua impotência,
as garatujas do quebra-cabeça,
as estrofes labirínticas, pregadas a martelo na cruz
da Poesia,
perdoai-os, senhor:
eles são incapazes de entender
o supremo sacrifício da Arte.

ACAIABA, Cícero. Poemas escritos na névoa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1988. p. 96-97