sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Micrômegas - Voltaire

Cap. I - Viagem de um habitante da estrela Sírio ao planeta Saturno

Num desses planetas que giram em torno da estrela chamada Sírio, havia um jovem de muito espírito a quem tive a honra de conhecer durante a última viagem que fez a este nosso pequeno formigueiro: chamava-se Micrômegas, nome bastante adequado a todos os grandes. Tinha oito léguas de altura: entendo, por oito léguas, vinte e quatro mil passos geométricos de cinco pés cada um.
          Alguns algebristas, gente sempre útil ao público, tomarão logo da pena e, tendo em vista que o senhor Micrômegas, habitante do país de Sírio, tem da cabeça aos pés vinte e quatro mil passos, ou sejam vinte mil pés, e que nós outros, cidadãos da terra, não medimos mais que cinco pés de altura e o nosso globo nove mil léguas de circunferência, esses algebristas, dizia, eu, calcularão que é preciso, absolutamente, que o globo que o produziu seja exatamente vinte e um milhões e seiscentas mil vezes maior que a nossa minúscula terra. Nada mais simples nem mais comum na natureza. Os Estados de alguns soberanos da Alemanha ou da Itália, cuja volta se pode fazer em meia hora, comparados ao império da Turquia, de Moscóvia ou da China, não são mais que uma débil imagem das prodigiosas diferenças que a natureza colocou em todos os seres.
          Sendo Sua Excelência da altura que eu disse, todo, os nossos escultores e pintores convirão sem dificuldade em que a sua cintura pode medir cinqüenta mil pés, o que constitui uma bela proporção.
          Quanto a seu espírito, é um dos mais cultivados que existem; sabe muitas coisas e inventou algumas outras: não tinha ainda duzentos e cinqüenta anos e estudava, segundo o costume, no colégio dos jesuítas de seu planeta, quando adivinhou, só pela força de seu espírito, mais de cinqüenta proposições de Euclides – isto é, dezoito mais que Blaise Pascal, o qual depois de ter adivinhado trinta e duas, por brincadeira, pelo que diz a sua irmã, tornou-se mais tarde um geômetra bastante medíocre e um péssimo metafísico. Lá pelos seus quatrocentos e cinqüenta anos, ao sair da infância, dissecou muitos desses pequenos insetos que têm apenas cem pés de diâmetro e que se furtam aos microscópios ordinários; compôs sobre a matéria um livro bastante curioso, mas que lhe valeu algumas contrariedades. O mufti de seu país, sujeito esmiuçador e ignorantíssimo, achou no seu livro proposições suspeitas, malsoantes, temerárias heréticas, que cheiravam a heresia, e o perseguiu sem tréguas: tratava-se de saber se a forma substancial das pulgas de Sírio era a mesma que a dos caracóis. Micrômegas defendeu-se com espírito; pôs as mulheres a seu favor; o processo durou duzentos e vinte anos. Afinal o mufti fez com que o livro fosse condenado por jurisconsultos que não o haviam lido, e o autor teve ordem de não aparecer na Corte durante oitocentos anos.
          Pouco se afligiu ele de ser banido de uma Corte onde só havia intrigas e mesquinharias. Compôs uma canção muito divertida contra o mufti, a que este não deu importância; e pôs-se a viajar de planeta em planeta, para acabar de formar o espírito e o coração, como se diz. Os que só viajam de cadeira de posta e berlinda ficarão decerto espantados com as equipagens de lá; pois nós, em nossa pequena bola de lama, nada concebemos além de nossos usos. O nosso viajante conhecia às maravilhas as leis da gravitação e todas as forças atrativas e repulsivas. Utilizava-as tão a propósito que, ou por intermédio de um raio de sol, ou graças à comodidade de um cometa, ia de globo em globo, ele e os seus, como um pássaro voeja de ramo em ramo. Em pouco percorreu a Via Láctea; e sou obrigado a confessar que nunca viu, em meio às estrelas de que é semeada, esse belo céu empíreo que o ilustre vigário Derham se gaba de ter enxergado na ponta de sua luneta. Não que eu pretenda alegar que o senhor Derham tenha visto mal, Deus me livre! mas Micrômegas esteve no local, é um bom observador, e eu não quero contradizer ninguém. Micrômegas depois da muitas voltas chegou ao globo de Saturno. Por mais acostumado que estivesse a ver coisas novas, não pôde, ante a pequenez do globo e de seus habitantes, evitar esse sorriso de superioridade que às vezes escapa aos mais sábios. Pois afinal Saturno não é mais que novecentas vezes maior que a terra, e os seus cidadãos não passam de anões que têm apenas umas mil toesas de altura. A principio, zombou ele um pouco com a sua gente, mais ou menos como um músico italiano se põe a rir de música de Lulli, quando chega em França. Mas o siriano, que tinha o espírito justo, compreendeu que uma criatura pensante poderia muito bem não ser ridícula só por ter seis mil pés de altura. Familiarizou-se com os saturnianos, depois de os haver espantado. Ligou-se de estreita amizade com o secretário da Academia de Saturno, homem de muito espírito, que na verdade nada inventara, mas prestava excelente conta das invenções doe outros, e fazia passavelmente pequenos versos e grandes cálculos. Transcreverei aqui, para satisfação dos leitores, uma singular conversação que Micrômegas teve um dia com o senhor secretário.

Continua...
Texto completo (e não muito grande) em : http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/micromegasN.html

quinta-feira, 24 de junho de 2010

O despertar dos mágicos - Louis Pauwels e Jacques Bergier

"Bruscamente, as portas cuidadosamente fechadas pelo século XIX sobre as infinitas possibilidades do homem, da matéria, da energia, do espaço e do tempo vão cair em estilhaços. As ciências e as técnicas darão um salto formidável, e a própria natureza do conhecimento vai ser novamente discutida. Mais do que um progresso: uma transmutação. Neste novo estado do mundo, a própria consciência deve mudar de estado.
Atualmente, em todos os domínios, todas as formas da imaginação estão em movimento. Excepto nos domínios onde se desenrola a nossa vida "histórica", obstruída, dolorosa, com a precariedade das coisas condenadas. Um fosso imenso separa o homem da aventura da humanidade, as nossas sociedades da nossa civilização. Vivemos à base de idéias, de morais, de sociologias, de filosofias e de uma psicologia que pertencem ao século XIX. Somos os nossos próprios bisavós. Contemplamos a subida dos foguetes em direção ao céu, sentimos a terra vibrar devido a mil radiações novas, chupando o cachimbo de Thomas Graindorge. A nossa literatura, os nossos debates filosóficos, os nossos conflitos ideológicos, a nossa atitude perante a realidade, tudo isto dormita atrás das portas que acabam de ir pelos ares. Juventude! Juventude! Ide dizer a toda a gente que as entradas estão abertas e que o Exterior já penetrou!"


Citação do livro: O despertar dos mágicos : introdução ao realismo fantástico, de Louis Pauwels e Jacques Bergier. Editora Edipe.
Taqmbém disponível na internet em ( e provavelmente também em versões pra impressão): http://sofadasala.vilabol.uol.com.br/jornalismo/livros/despertar_dos_magicos/indice.html

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Os Irmãos Karamázov - Dostoievski

Que livrão! Mas as páginas passam que você nem sente...

"Se Deus não existe, então tudo é permitido". É com base nessa máxima que o romance desarrola.

Fyodor Karamázov é um homem totalmente sem compromisso com qualquer valor moral, independentemente de acreditar na existência de Deus ou não. Tem três filhos e os deixa entregues ao mundo.

O primeiro filho, Dmitri Karamázov, sente ódio mortal pelo pai devido ao seu desamparo e às suas preferências (libertinagem e riquezas), mas é, ele mesmo, um libertino e fanfarrão, mas, ao contrário do pai, muitíssimo liberal, não sabe lidar com dinheiro. Embora compreenda e valorize a moral vigente, Dmitri é muito mais entregue aos seus desejos e sentimentos do que à razão. A razão nele, aliás, é quase nula no que diz respeito às suas ações e decisões, que são impulsivas.

Os outros dois filhos de Fyodor Karamázov são de seu segundo casamento: Ivan e Aliéksiei Karamázov.

Ivan Karamázov é o autor da frase "Se Deus não existe, então tudo é permitido", e questiona os valores morais. É o mais inteligente dentre os irmãos e embora adote uma teoria amoral, aproxima-se muito do que se chama um homem moral. Mas alguém que não acredite no valor da moral predominante e aja de maneira tão passiva, tão socialmente certa, deve enfrentar algum conflito interior: de fato, é o caso de Ivan.

Aliéksiei Karamázov, ou somente Aliócha, é o irmão caçula e mais amável. Não julga os atos do pai e dos irmãos e é um ótimo ouvinte e aconselhador. Em seus atos baseia-se antes pela sua intuição do que pela razão pura. É querido por todos e sabe igualmente amar a todos. Torna-se monge (de uma religião que não lembro o nome, nem sei se existe), embora não acredite necessariamente em Deus.

Smierdiakov é outro personagem do livro, provável quarto filho de Fiodor Kamarázov. A mãe dele que era a "louca da cidade" morreu na hora do parto, na casa do criado de Fiódor, que criou-o junto com sua esposa. Smierdiakóv criou-se, então, dentro da casa de seu suposto pai. É sempre amargo, mas tem uma simpatia imensa por Ivan, por considera-lo um homem de espírito, assim como a si mesmo. Tem profunda influência pelo pensamento de Ivan sobre a amoralidade, como nos mostra o romance em determinado momento.

Enfim, "Os irmãos Karamázov" nos mostra qual é a relação entre a existência de Deus e a moral adotada ou não pelos homens. Até que ponto os homens baseiam-se em alguma teoria moral para agir? Até que ponto a idéia de um Deus influencia ou não no agir? É o que nos mostra Dostoiévski nesse romance empolgante, nesse teatro dos sentimentos humanos.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Passagem das horas - Álvaro de Campos

"Trago dentro do meu coração,  
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,  
Todos os lugares onde estive,  
Todos os portos a que cheguei,  
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,  
Ou de tombadilhos, sonhando,  
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...  
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...  
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,  
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir  
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.  

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,  
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,  
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,  
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,  
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,  
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,  
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,  

(...)

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.  
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei  
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,  
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque  
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,  
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.  

Seja o que for, era melhor não ter nascido,  
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,  
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,  
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair  
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,  
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,  
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,  
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,  
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

(...)

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,  
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.  
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.  
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...  
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...  
Só estou bem quando ouço música, e nem então.  
Jardins do século dezoito antes de 89,  
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?  
  
Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,  
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai. 

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.  
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.  
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.  
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.  
Minha quinta na província,  
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.  
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,  
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,  
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...  
  
 Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.  
Só humanitariamente é que se pode viver.  
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,  
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.  
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim! 
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,  
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.  
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,  
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.  
Amei e odiei como toda gente,  
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,  
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.  

(...)

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver  
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.  
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,  
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,  
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,  
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,  
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.  

(...)

Sentir tudo de todas as maneiras,  
Viver tudo de todos os lados,  
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,  
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos  
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.  

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,  
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,  
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,  
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,  
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.  
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.  
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,  
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,  
Porque ser inferior é diferente de ser superior,  
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.  
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,  
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,  
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,  
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.  
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,  
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.  
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,  
(No mesmo abraço comovido)  
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,  
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,  
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,  
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,  
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —  
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.  

Beijo na boca todas as prostitutas,  
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,  
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos  
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.  
Tudo é a razão de ser da minha vida.

(...)

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,  
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,  
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares  
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.  
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,  
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).  
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!  
  
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,  
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)  
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,  
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,  
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,  
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,  
Os seus half-holidays inesperados...  
Mary, eu sou infeliz...  
Freddie, eu sou infeliz...  
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,  
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizésseis,  
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —  
Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,  
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,  
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

(...)

Fui para a cama com todos os sentimentos,  
Fui souteneur de todas ás emoções,  
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,  
Troquei olhares com todos os motivos de agir,  
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,  
Febre imensa das horas!  
Angústia da forja das emoções!  
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,  
A cadela a uivar de noite,  
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,  
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,  
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,  
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,  
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,  
Orgia intelectual de sentir a vida!  

(...)

Sentir tudo de todas as maneiras,  
Ter todas as opiniões,  
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,  
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,  
E amar as coisas como Deus.  

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,  
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia  
Que a dor real das crianças em quem batem  
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —  
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)  
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,  
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,  
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque  
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.  

(...)

Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...(...)
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,  
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,(...)
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...  
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,  
E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,  
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,  
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,  
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...(...)
Caem as folhas secas no chão irregularmente,  
Mas o fato é que sempre é outono no outono,  
E o inverno vem depois fatalmente,  
há só um caminho para a vida, que é a vida...

(...)

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,  
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,  
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão  
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.  

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,  
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.  
Não me subordino senão por atavisnio,  
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.  

(...)

Fui educado pela Imaginação,  
Viajei pela mão dela sempre,  
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,  
E todos os dias têm essa janela por diante,  
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

(...)

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,  
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,  
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha  
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...  
(...)"

           
Poema completo em : http://www.revista.agulha.nom.br/facam07.html