segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Passagem das horas - Álvaro de Campos

"Trago dentro do meu coração,  
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,  
Todos os lugares onde estive,  
Todos os portos a que cheguei,  
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,  
Ou de tombadilhos, sonhando,  
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...  
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...  
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,  
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir  
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.  

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,  
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,  
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,  
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,  
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,  
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,  
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,  

(...)

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.  
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei  
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,  
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque  
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,  
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.  

Seja o que for, era melhor não ter nascido,  
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,  
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,  
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair  
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,  
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,  
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,  
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,  
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

(...)

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,  
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.  
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.  
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...  
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...  
Só estou bem quando ouço música, e nem então.  
Jardins do século dezoito antes de 89,  
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?  
  
Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,  
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai. 

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.  
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.  
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.  
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.  
Minha quinta na província,  
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.  
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,  
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,  
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...  
  
 Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.  
Só humanitariamente é que se pode viver.  
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,  
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.  
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim! 
Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,  
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.  
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,  
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.  
Amei e odiei como toda gente,  
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,  
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.  

(...)

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver  
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.  
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,  
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,  
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,  
Uma razão para descansar, uma necessidade de me distrair,  
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.  

(...)

Sentir tudo de todas as maneiras,  
Viver tudo de todos os lados,  
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,  
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos  
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.  

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,  
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,  
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,  
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,  
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.  
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.  
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,  
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,  
Porque ser inferior é diferente de ser superior,  
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.  
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,  
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,  
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,  
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.  
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,  
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.  
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,  
(No mesmo abraço comovido)  
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,  
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,  
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,  
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,  
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —  
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.  

Beijo na boca todas as prostitutas,  
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,  
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos  
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.  
Tudo é a razão de ser da minha vida.

(...)

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,  
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,  
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares  
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.  
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,  
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).  
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!  
  
(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,  
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)  
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,  
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,  
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,  
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,  
Os seus half-holidays inesperados...  
Mary, eu sou infeliz...  
Freddie, eu sou infeliz...  
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,  
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fizésseis,  
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —  
Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,  
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,  
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

(...)

Fui para a cama com todos os sentimentos,  
Fui souteneur de todas ás emoções,  
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,  
Troquei olhares com todos os motivos de agir,  
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,  
Febre imensa das horas!  
Angústia da forja das emoções!  
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,  
A cadela a uivar de noite,  
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,  
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,  
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,  
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,  
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,  
Orgia intelectual de sentir a vida!  

(...)

Sentir tudo de todas as maneiras,  
Ter todas as opiniões,  
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,  
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,  
E amar as coisas como Deus.  

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,  
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia  
Que a dor real das crianças em quem batem  
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —  
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)  
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,  
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,  
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque  
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.  

(...)

Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...(...)
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,  
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,(...)
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...  
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,  
E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,  
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,  
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,  
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...(...)
Caem as folhas secas no chão irregularmente,  
Mas o fato é que sempre é outono no outono,  
E o inverno vem depois fatalmente,  
há só um caminho para a vida, que é a vida...

(...)

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,  
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,  
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão  
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.  

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,  
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.  
Não me subordino senão por atavisnio,  
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.  

(...)

Fui educado pela Imaginação,  
Viajei pela mão dela sempre,  
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,  
E todos os dias têm essa janela por diante,  
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

(...)

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,  
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,  
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha  
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...  
(...)"

           
Poema completo em : http://www.revista.agulha.nom.br/facam07.html