quinta-feira, 9 de abril de 2009

A leveza e agonia humana em Milan Kundera e o sofrimento dos animais

Karenin é um personagem do livro "A insustentável leveza do ser" de Miran Kundera, ela é a cadela de Tereza, uma das protagonistas do livro. O livro é ótimo! Terei de ler muitos livros obrigatoriamente para duas matérias que peguei na UnB, mas todos eles, pelo menos até agora, são muito bons.

A decadência da condição humana deixa-se transparecer nesse romance. O homem é alvo de cobranças que vêm de todos os lados: o país em que vive, as pessoas que moram ao lado, o trabalho, a família, os amigos. Fidelidade, amor, responsabilidade, tristeza, patriotismo, carinho, cidadania, severidade, seriedade, alegria... são todos sentimentos cobrados e ai de quem não os tiver espontaneamente, pois se não se pode dar tais sentimentos, deve-se fingí-los. Tentar escapar de tais cobranças é ainda um caminho perigoso, pois há uma forte tendência em se criar um compromisso com o descompromisso, onde teme-se em deixar transparecer gratuitamente o que outrora nos negávamos a dar, mesmo que queiramos dar em determinados momentos.

A suposta leveza adquirida no livrar-se de todas essas cobranças e no não importar-se com o que é convencional torna-se insustentável quando não se consegue mais evitar o agir dito irresponsável, quando mesmo que queiramos agir de determinada maneira, tenhamos medo de nos mostrar fracos ou comuns. Sabe aquela frase daquela música do Legião Urbana, letra de Renato Russo, que diz assim: "Quantas chances desperdicei quando o que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém" ? Pois então!

A teoria nietzscheana do eterno retorno quer, antes de nos levar a caminhos metafísico-racionais, atentar-nos a esta vida que, mesmo parecendo tão medíocre e pequena, pode ter uma saída alegre, não necessariamente feliz, pois a dor é inevitável e também dela deve-se tirar proveito, mas uma vida que valha a pena ser vivida uma vez e ainda por mais e mais vezes, infinitamente. Esse caminho alegre só pode ser construido por cada um, individualmente. O ser humano deve aniquilar aquilo que lhe traz desprazer e celebrar aquilo que lhe traz prazer. Mas é aí que bicho pega: o que é que sempre é desprazeroso ou que sempre é prazeroso? O homem que consegue se livrar das cobranças de aparências que lhe faziam, consegue livrar-se de sua própria cobrança por uma aparência livre e alegre, por uma aparência leve?

Mas, voltando aonde eu queria chegar: o homem é carrasco de si mesmo e, como se já não fosse o bastante, é carrasco de seus semelhantes. O homem reclama de seu Estado, de sua família, de seu trabalho, de seus amigos e inimigos que o fazem sofrer, mas não exita em fazer sofrer... Infelizmente, em quase todos os casos, ter pena de um homem que sofre injustamente é como ter pena de um criminoso que, tendo cometido várias barbáries, foi condenado por um crime que não cometeu.

Na sétima parte do livro, "O sorriso de Karenin", Kundera nos põe a pensar no sofrimento de seres que deveriam estar livres de toda a vilania dessa complicada espécie humana, que quanto mais tenta consolar-se, mais se dilacera e dilacera também quem estiver por perto. Será que ainda é válido justificar a título de cadeia alimentar o sofrimento que o homem impõe ao seu prato principal antes de comê-lo? O homem vangloria-se de sua "humanidade", isto é, de toda sua bondade e compaixão, e chama de "animalidade" toda ação bruta e cruel, mas deveria repensar essas atribuições. Uma leoa quando vai matar um cervo morde-o logo no pescoço, mata-o e come-o. A comida humana não sofre, entretanto, só na hora da morte.
Há muito o que se dizer sobre isso, por enquanto fiquemos com as palavras de Kundera:


"Logo no começo do Gênesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro, o Gênesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta de que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus de lá tivesse dito "Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas", para que toda a evidência do Gênesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assá-lo no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela que costumava comer e apresentasse (embora tarde de mais) as suas desculpas à vaca.

(...)

Prossegue [Tereza], portanto, a caminho com as suas vitelas, que lá vão com os flancos a roçar, e mais uma vez pensa com os seus botões que aqueles bichos são realmente muito simpáticos. Mansos, sem malícia, às vezes de uma alegria pueril, parecem cinqüentonas gordas a armarem‑se às meninas de quatorze anos. Nada mais emocionante do que vacas brincando. Tereza olha para elas com ternura e pensa (é uma ideia que a assalta irresistivelmente de dois anos para cá) que a humanidade é um parasita da vaca, tal como a tênia é um parasita do homem: está presa às suas tetas como uma sanguessuga. O homem é um parasita da vaca ‑ seria certamente a definição que a zoologia de um não‑homem daria ao homem.

(...)

Tereza acaricia a cabeça de Karenin mansamente deitada no seu colo. Tem mais ou menos o seguinte raciocínio: não há mérito nenhum em portarmo‑nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder viver lá e até com o próprio Tomas, é obrigada a portar‑se como uma esposa desvelada porque ela precisa dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos espontâneos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.

A verdadeira bondade do homem só pode manifestar‑se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade (o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê, isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desfalque fundamental que está na origem de todos os outros.

(...)

Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar a cabeça de Karenin e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece‑me outra imagem: a de Nietzsche a sair de um hotel de Turim. Vê um cocheiro a açoitar um cavalo. Chega‑se ao pé do cavalo e, sob o olhar do cocheiro, abraça‑se à sua cabeça e desata a chorar.

A cena passava‑se em 1889 e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras palavras, foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou. Mas, na minha opinião, é justamente isso que reveste o seu gesto de um profundo significado. Nietzsche foi pedir perdão por Descartes ao cavalo. A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar abraçado ao cavalo.

E é desse Nietzsche que eu gosto, tal como gosto da Tereza que tem ao colo a cabeça de um cão mortalmente doente e que a afaga. Ponho‑os um ao lado do outro, pois tanto um como o outro se afastam da estrada em que a humanidade, "dona e senhora da natureza", prossegue a sua marcha sempre em frente."

Os fatos nos falam ainda mais do que considerações éticas, como nos mostra o documentário do Instituto Nina Rosa, A carne é fraca:

http://www.youtube.com/watch?v=EghRqeZA-TU

http://www.youtube.com/watch?v=SKz6sgnUgdg


Enfim, pensar no sofrimento humano é válido sim, afinal, somos ou não somos humanos? Queremos ou não nos compreender? Mas há muito mais do que isso para se pensar. Há que se pensar no sofrimento de quem sofre sem fazer sofrer. Assim como queremos amenizar nossa própria dor, mesmo nos sentindo, as vezes, merecedores dela, será que não é válido deixar de ser culpado pela dor alheia? Pior, pela dor de quem não merece sentir dor?
É muito fácil para um leigo apontar a carência de proteína ou, nos casos mais extremos, de alguma vitamina "indispensável" para sua sobrevivência contida na carne, e assim justificar o seu consumo. Nessa hora, todos parecem ser PhDs em Nutrição. O problema da maioria das pessoas não está, entretanto, na suposta crueldade inerente aos seres humanos, está na ignorância e na preguiça de pensar sobre os seus atos... Nesse século, não é mais incomum que alguém discorde e discuta sobre atos e teorias amplamente aceitos pela sociedade: se são válidas as leis morais, se o mundo econômico é desigual, se é correto acabar com ecossistemas em troca de lucro... Mas essas coisas só são amplamente discutidas porque não podem ser completamente convenientes para as pessoas, a curto ou longo prazo. Mas pra que discordar do nosso hábito cultural (e natural) de comer carne? Na verdade, não tem necessidade de se discutir uma coisa tão banal, tão simples, tão inocente. Ou será talvez desagradável discutir sobre algo tão conveniente ao nosso paladar e a  nossa saúde (porque a carne é sem dúvida indispensável à saúde, não é mesmo?). O assunto sobre o consumo de carne, não deve ser tratado apenas pelo seu lado moral ou ético (com sermões longos e chatos como esse), temos que nos esclarecer sobre as nossas justificativas e verificarmos os prós e contras de nossos atos. Pensar apenas no impacto do consumo de  carne sobre o meio ambiente e sobre nossa saúde, entretanto, é pensar egoisticamente e racionalmente, ou seja, não é suficiente pra maioria das pessoas, que não se preocupa com a própria saúde e nem com o futuro do planeta. All we need is love! Só quando conseguirmos olhar para um boi e para um frango e não imaginá-los como coisas a serem comidas, que não pensam e não sentem e estão totalmente a nossa mercê, só quando conseguirmos olhar para eles e tivermos um sentimento de completude, de igualdade, de respeito, só assim poderemos nos livrar do nosso ato cruel com passividade. Enxergando os outros animais dessa maneira, como seres que tem suas qualidades, seus defeitos e sua graça, não deixamos de comer carne como um ato de renúncia, de resistência, afinal esse ato quando sincero é um simples ato de amor.

3 comentários:

Ailton Rocha disse...

Expressivo, bastante expressivo o seu comentário sobre o romance. Confesso que nunca tive muito entusiasmo pelo estilo seco de Kundera, mas agora, a partir de seu ponto de vista, deste seu texto escrito com espontaneidade, estou sentindo vontade de revisitar o autor.

Abraço
Ailton

Suzane Lima disse...

Pois é Ailton. Comecei a ler o Kundera por obrigação e comecei mal, pelo "Livro do riso e do esquecimento". "Seco" (tava pensando nessa palavra hoje)! De fato, tava odiando o livro! Tanto que deixei ele lá pra página 70. Mas como eu tinha que ler o danado do Kundera mesmo, fui pra "A insustentável leveza do ser", que dizem ser bom. Esse sim! Muito bom.
Abraços!

Victor disse...

É, o Kundera é "seco", mesmo. Ou talvez "denso". Nos deixa livres pra imaginar, já que não descreve: narra, reflete, especula. O texto dele tem uma poesia intelectual, não fere a imaginação, só o entendimento. É seco, é denso, mas é apaixonante ao mesmo tempo. Bem, eu acho. Ou talvez seja porque eu esteja completamente viciado na obra desse velho tcheco louco, e ache que a atmosfera de seus livros é inacreditavelmente realista e melancólica. =)